Mulheres desistem da música aos 41 — e o Heavy Metal explica parte desse problema

Foto de Julia Ourique por Debora Gauziski / Foto de Doro via Divulgação

Machismo, desigualdade, apagamento e sobrecarga. Esses são alguns dos fatores que fazem com que mulheres abandonem a carreira na música, em média, aos 41 anos, enquanto os homens seguem até os 62. Quem revela esse dado é a jornalista, pesquisadora e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Julia Ourique, no livro recém-lançado “Feminismo na Indústria da Música” (Ed. Multifoco).

Com especialização em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Julia investiga as estruturas de poder na música, cruzando temas como indústria, feminismo e políticas culturais. A obra mostra como gêneros aparentemente distantes — como o Heavy Metal e o sertanejo — compartilham dinâmicas semelhantes quando o assunto é exclusão de mulheres e dissidências, sobretudo no mercado independente.

E, para minha surpresa e alegria, o livro também cita a Treinam — Turma Remota de Ensino Intensivo para Artistas Mulheres, projeto premiado que esta que vos escreve ajudou a fundar em 2020 e que continua fazendo barulho como exemplo de rede de fortalecimento e enfrentamento ao machismo sistêmico na indústria da música.

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Metal, sertanejo e o estigma da “música de macho”

A jornalista e pesquisadora Julia Ourique (Debora Gauziski)

Sobre essa conexão pouco explorada entre Metal e sertanejo, Julia explica:

“Tanto o Heavy Metal quanto o sertanejo carregam estigmas de serem ‘músicas de macho’, o que limita a participação de mulheres e dissidências. A diferença é que o sertanejo, com apoio do agronegócio, criou uma indústria autossustentável desde os anos 90, enquanto o metal ainda espera reconhecimento externo. A lição é clara: investir na força dos fandoms e criar redes onde artistas consolidados apoiam os independentes, como já acontece no sertanejo, é essencial para fortalecer qualquer cena.”

Julia já vinha aprofundando essas questões em pesquisas anteriores ao livro, como no artigo “Podem as mulheres tocar Heavy Metal? Afetividade misógina no Heavy Metal brasileiro”, publicado na Contrapulso – Revista Latinoamericana de Estudos em Música Popular, da Espanha.

O Metal e a construção da masculinidade

Nesse artigo, estrutura sua análise com três pilares fundamentais ao apresentar a relação entre música, afetividade e construção de identidades no Heavy Metal, um gênero profundamente marcado por uma estética e cultura associada à masculinidade.

Ela aborda a história do Metal e sua masculinização ao apontar que o Metal surgiu como um gênero ligado à resistência, ao som pesado e à rebeldia, frequentemente atrelado a um ideal de masculinidade. A entrada de mulheres sempre foi cercada de resistência, preconceito e objetificação, e por fim aborda as mulheres no Heavy Metal.

Segundo a autora, historicamente, o papel das mulheres foi restrito a figuras como groupies ou vocalistas. Bandas femininas como Girlschool (1978) e Vixen (1973) foram exceções em um ambiente dominado por homens. No Brasil, nomes como Valhalla, Nervosa e Crypta seguem rompendo barreiras, ocupando palcos e reescrevendo essa história.

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O caso simbólico de Fernanda Lira

Crypta no Summer Breeze Brasil. Foto por Stephanie Hahne/TMDQA!

É nesse contexto que surge o estudo de caso sobre Fernanda Lira, baixista e vocalista da Crypta. Embora o episódio analisado por Julia em pesquisa não seja recente, tornou-se simbólico: Fernanda, ao pedir ajuda financeira nas redes sociais para mobiliar sua casa, foi alvo de uma onda brutal de ataques misóginos. Uma situação que, segundo Julia, jamais teria gerado tamanha comoção negativa se partisse de um artista homem.

O que deveria ser um gesto comum — acionar sua rede de seguidores — se transformou em linchamento virtual, expondo, mais uma vez, como o machismo opera de forma específica quando quem ocupa o palco é uma mulher.

Aqui surge um conceito crucial cunhado por Julia: afetividade misógina. É quando a relação de amor, admiração e pertencimento construída entre fãs e artistas se rompe e dá lugar ao controle, ao julgamento e à punição. Uma dinâmica perversa onde, se a mulher não corresponde às expectativas impostas — seja no comportamento, na aparência ou na forma de existir—, sofre retaliações emocionais e simbólicas, muitas vezes públicas, cruéis e violentas.

Rede, apoio e políticas públicas – ou não há futuro

E como enfrentar isso? Julia é categórica:

“Para uma artista independente e mulher, redes de apoio são fundamentais. A indústria da música precisa romper com velhas regras e abrir espaço para uma atuação coletiva e acolhedora, onde mulheres se fortalecem e evitam cair nas mesmas armadilhas. Além da união, é urgente que o Estado invista em políticas culturais e afirmativas para garantir mais acesso e equidade. Sem apoio público, não há crescimento sustentável — e é preciso pressionar para que mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ não fiquem mais uma vez à margem.”

Julia Ourique sobre “Feminismo na Indústria da Música”

Os números não mentem

Mas o problema vai além do Metal. Dados revelados no livro “Feminismo na Indústria da Música” mostram um panorama alarmante sobre a permanência das mulheres na música.

A partir de levantamentos da UBC (União Brasileira de Compositores), DataSim (Censo da Música Independente), Sebrae e IBGE, Julia demonstra que as mulheres encerram suas carreiras, em média, aos 41 anos, enquanto os homens seguem até os 62.

Essa desistência precoce não é uma simples decisão pessoal — ela é resultado direto do machismo estrutural que atravessa todo o mercado musical. As razões são múltiplas e acumulativas: menores cachês, falta de espaço nas programações, violência de gênero, assédio, ausência de políticas públicas, pressão estética e etarismo.

Mas uma delas pesa de forma especialmente cruel e persistente: a sobrecarga com as tarefas domésticas e familiares, que, historicamente, recai quase exclusivamente sobre as mulheres.

Embora sejam mais de 50% da população brasileira, as mulheres representam apenas 15% dos profissionais da música no país, segundo os dados reunidos no livro. É uma indústria que simplesmente não foi pensada para suas trajetórias.

Quando elas envelhecem, tornam-se mães ou ousam priorizar seus próprios desejos e autonomia, essa mesma indústria as empurra para fora do jogo.

Apagamento que não é só no palco

E o apagamento não se dá apenas no palco. Mulheres raramente ocupam cargos de direção musical, produção, regência ou técnica. E, quando estão lá, são frequentemente subestimadas, questionadas ou invisibilizadas. Aguentar a carga extra, dentro de uma profissão historicamente difícil, se torna insustentável para muitas.

O episódio de Fernanda Lira não é exceção. É mais uma peça desse quebra-cabeça, onde, para muitas mulheres, o caminho no metal segue pavimentado não apenas por riffs pesados, mas também por olhares desconfiados, comentários hostis e estruturas que ainda insistem em permanecer presas ao passado.

Artistas na contramão das estatísticas

A experiência da cantora paulistana Isis Lee é, por si só, uma resposta viva — e também uma provocação — a esses dados. Cega, mãe e mulher 40+, ela escolheu desafiar as estatísticas que tentam empurrar mulheres para fora da música.

Aos 40 anos, Isis decidiu se lançar no antigo sonho de juventude, no rock, após uma trajetória na música gospel. E foi justamente na música pesada que encontrou a resistência — em um cenário que insiste em ser hostil com mulheres que não se encaixam nos padrões.

“Lançar uma carreira no rock aos 40 é, sim, um ato de resistência. É quase como gritar contra as estatísticas. Porque quando você é mulher, mãe, 40+, e ainda carrega uma deficiência, o sistema inteiro tenta te convencer que não tem mais espaço pra você.”

Isis Lee

Ao enfrentar não só o machismo estrutural, mas também o etarismo e o capacitismo, Isis sente-se constantemente tendo que provar que existe, que pode, que merece estar no palco.

“A indústria da música parece programada pra dizer que, depois dos 40, você tem que desaparecer. Que mulher no rock tem prazo de validade. Sigo, mas não romantizo. Andar na contramão desses dados é cansativo, é solitário muitas vezes, não fosse essencialmente o apoio de outras mulheres.”

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Elas seguem. E seguem pesadas

Isis Lee segue mirando mulheres mais velhas que resistem ou resistiram como símbolos importantes como Doro Pesch, Joan Jett, Lita Ford, Rita Lee e Pitty.

A boa notícia é que essas mulheres não só seguem, como se organizam, se fortalecem, criam redes — como a própria Treinam — e constroem uma cena mais justa, mais inclusiva e, acima de tudo, mais potente.

Parece loucura estarmos falando disso em 2025, uma loucura ainda necessária. Se alguém ainda ousa perguntar se as mulheres podem tocar heavy metal, a resposta é simples, definitiva e amplificada: sim. E vão continuar fazendo isso, quer gostem ou não.

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Isis Correia

Mulheres desistem da música aos 41 — e o Heavy Metal explica parte desse problema


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