Nem todo talento cabe no microfone
O mercado da música brasileira, especialmente hoje em dia com tantas novas nuances nas prateleiras, vive um fenômeno recorrente: artistas que confundem vocação com desejo de reconhecimento. Compositores brilhantes, produtores geniais, gente que moldou o som de uma geração — e que, por pressão ou vaidade, decide ocupar um lugar que não necessariamente é o seu. Um palco. Um microfone. Um personagem.
Não se trata de desmerecer quem deseja se reinventar. O problema começa quando essa reinvenção ignora o centro da própria carreira, quando um profissional que transformou bastidores em potência decide, de forma impulsiva, abandonar o que construiu para tentar se afirmar como —entre muitas aspas — artista principal. Muitas vezes essas decisões vem acompanhadas de artistas sem planejamento, sem estratégia de carreira, sem foco, sem repertório artístico consolidado e sem domínio do novo território.
É aí que a arte se fragiliza. Os artistas nos bastidores, que usam a sua genialidade para outros artistas, na hora de pensar em si como produto de front, acabam perdidos muitas vezes na própria construção de identidade. Afinal, escrever sertanejo, produzir pagode, fazer camping de funk, mixar um disco de rap, são acessos totalmente distintos e essa gama de referências inclusive atrapalha, em grande parte das vezes, essa construção.
Encontrar identidade artística exige tempo, consciência e humildade. Saber onde se é indispensável é um traço de maturidade profissional e de inteligência de mercado. Um bom compositor que tenta ser cantor sem preparo, ou um produtor que vira DJ por conveniência estética, pode comprometer o que já vinha funcionando. Não por falta de talento, mas por falta de direção.
O movimento inverso também acontece. Intérpretes com grande apelo vocal ou cênico começam a se aventurar na composição ou produção, muitas vezes por pressão da indústria, que valoriza a figura do “artista completo”, como se centralizar todas as funções fosse sinônimo de autenticidade. Nem sempre é. Às vezes, o desejo de ser “completo” vira um tiro no pé.
Há um mito nocivo de que estar no centro é melhor do que sustentar a margem. Como se ser “só” compositor ou “só” produtor fosse uma limitação — quando, na verdade, pode ser justamente o que faz a engrenagem girar. O palco não é a única forma de visibilidade. E aplauso não é, necessariamente, validação.
O problema não está na escolha de trilhar novos caminhos. Está na motivação por trás dessa escolha. Muitos não querem subir ao palco por paixão à performance, mas por necessidade de validação. Por medo de parecerem “menores” aos olhos de uma indústria que ainda mede sucesso pela quantidade de seguidores ou pelo tamanho do nome no cartaz.
A verdade é que qualquer uma das posições exige dom, afinidade, visão artística. E sim — exige o tal “star quality”. Mas se você tem isso como compositor, e não como intérprete, tudo bem. A arte, como a medicina, é feita de especialidades. Um cardiologista entende o corpo humano como um todo, mas não faz parto. Um ortopedista pode estudar neurologia na faculdade, mas não realiza cirurgia cerebral. E ninguém questiona seu valor por isso.
Na música, deveríamos pensar da mesma forma. A centralização da função artística nem sempre é um caminho para o protagonismo — muitas vezes, é só vaidade com embalagem de ambição.
Ser artista exige mais do que vontade. Exige clareza. Estratégia. Autoconhecimento. Às vezes, permanecer onde se é essencial é o gesto mais revolucionário de todos.
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Dani Pepper