Entre o amor e a sobrevivência, Kayode transforma memórias em manifesto no EP “HELENA”

Kayode
Créditos: Divulgação

O rapper Kayode está acostumado a escrever com o coração exposto. Mas em HELENA, seu novo EP produzido por 808 Luke, ele faz algo ainda mais raro: transforma em arte um conselho que por muito tempo julgou como repreensão.

Com nove faixas, o disco parte de uma provocação familiar para traçar uma linha tênue entre os sonhos e a sobrevivência. O nome do projeto é uma homenagem direta à sua avó, dona Helena, cuja frase “música só vale a pena se der dinheiro” ecoa como ponto de partida para uma obra densa, política e espiritual.

“Eu achava que ela não gostava de rap. Mas depois entendi que era sobre cuidar de mim antes de querer mudar o mundo”, conta Kayode ao TMDQA!. “As críticas dela se tornaram ensinamentos ancestrais”, acrescentou.

A reflexão sobre dinheiro, que poderia soar rasa em tempos de ostentação estética e lírica, ganha em HELENA um contorno de crítica social. É um disco que fala de grana não pela lente neoliberal que domina parte da cena atual, mas pelo viés de quem entende a emancipação financeira como ferramenta de dignidade e continuidade. E que reconhece que, no Brasil, falar de sobrevivência é falar de raça, de classe e de território.

Dinheiro é ponto de partida

A parceria com 808 Luke foi essencial para a construção desse universo. Em vez de beats genéricos, o EP soa como um organismo vivo, com texturas orgânicas, bateria influenciada pelo samba, refrões que funcionam como mantras e a intenção clara de dialogar com o Sul Global.

A escolha estética não é aleatória: remeter à América Latina é também afirmar um lugar político dentro do rap. “Temos os mesmos valores políticos. A gente sabe da importância de falar sobre grana, mas sem o discurso individualista que toma conta da cena”, diz Luke.

Ao trazer nomes como Victor Xamã, Minixtra, GVS, Furia, DJ MichaCNR e Nuria, Kayode constrói uma obra de base coletiva. Não há glamour gratuito, nem frases feitas. Há um esforço genuíno de transformar a própria biografia em arte que acolhe e ensina. E isso fica claro em faixas como “Fé nas Crianças”, cujo videoclipe, dirigido pelo próprio artista, registra cenas simples do cotidiano no bairro, como um gesto de eternizar a beleza do que é ordinário.

“O disco fala sobre a vida real. A busca pelo dinheiro é a busca pela emancipação do trabalhador. Eu sei que não vou ficar rico com a música, o dinheiro é questão de sobrevivência e conforto pessoal”, afirma o produtor.

Entre o íntimo e o manifesto

Apesar de profundamente pessoal, HELENA não é uma carta fechada à família. É um espelho em que muitos ouvintes se reconhecem.

Kayode afirma que, ao colocar sua história em paralelo com a de outros, deseja tocar quem também carrega dilemas semelhantes. O disco, portanto, é ao mesmo tempo um relato íntimo e um manifesto contra o esvaziamento da arte. Um grito em favor da coletividade, da consistência artística e da independência criativa.

“Eu tenho colocado a minha história em paralelo com a vida de outras pessoas. Eu sei que a questão a grana não é uma coisa apenas íntima. A minha verdade também dialoga com a realidade de mais pessoas. Eu tenho um papo muito coletivo, diferente desse discurso individualista da cena atual”, explica o rapper.

Mais do que falar sobre grana, o EP fala sobre dignidade. Sobre entender que não há poesia sem prato cheio, e que os sonhos precisam de estrutura para se sustentarem no tempo. É, também, um posicionamento dentro da própria cena — um recado ao mainstream de que o underground não parou de produzir qualidade, mesmo que os holofotes não estejam virados para ele.

“A gente tem visto uma cobrança sobre o underground, e quis mostrar que não tem ausência da minha parte. Estou lançando bastante coisa com muita qualidade”, acrescentou ele.

A cura de Kayode

Depois de lançar Nuvens & Ovelhas Negras ao lado de Iky Castilho no início do ano, Kayode entrega agora um EP com temática oposta, mas mesma profundidade. Se em NON a resistência vinha em forma de acolhimento, HELENA opta por uma franqueza mais direta, ainda que sensível, sobre o papel do dinheiro em nossos percursos.

Com HELENA, Kayode reafirma sua posição como uma das vozes mais lúcidas e inquietas do rap brasileiro contemporâneo. Um artista que não tem medo de colocar a própria história em jogo para provocar escuta, consciência e transformação.

“Esse é o trabalho que tenho mais orgulho. Os dois discos que lancei neste ano eu me orgulho demais porque tem muito coração. Eu espero demais que as pessoas ouçam o trabalho igual para conseguir sentir o que quero dizer ali”, finaliza.

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Felipe Mascari

Entre o amor e a sobrevivência, Kayode transforma memórias em manifesto no EP “HELENA”


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