A beleza como missão: a travessia de Seu Jorge

Antes de virar símbolo nacional, Seu Jorge foi sobrevivente. Viveu nas ruas, encontrou refúgio no teatro e descobriu na música um farol – uma linguagem, segundo ele, capaz de aliviar a angústia e organizar o caos. A arte foi abrigo, expressão e ponte para o mundo. Com ela, aprendeu a se comunicar, a se reinventar, a existir com dignidade. Seu Jorge construiu, com essa matéria-prima, um dos legados mais plurais da cultura brasileira.
Ao longo de mais de três décadas, Seu Jorge construiu uma das carreiras mais plurais da cultura brasileira, rompendo barreiras entre classes, gêneros e linguagens. Cantor, ator, compositor, CEO de produtora cultural. Um homem em constante travessia.
No fim dos anos 1990, ele despontou como fundador da Farofa Carioca, grupo que unia samba, rap, soul e reggae com crítica social afiada e uma vontade transbordante de experimentar.
Forjado entre os palcos da boemia carioca, as rodas de samba e os bailes de charme, Seu Jorge foi alimentado por inteligências que ele chama de “tecnologias humanas”, fomentadas através das conexões com Xande de Pilares, Gabriel Moura e tantos outros nomes que estiveram ao seu lado no começo da carreira.
“Todas essas mentes no início da minha carreira foram saberes que observei e adquiri. A convivência com gente talentosa me fez crescer.”
Planet Hemp, Hip Hop e Negro Drama
Antes mesmo de alcançar o estrelato com sua própria banda, Seu Jorge teve uma passagem importante como percussionista do Planet Hemp. Foi ali que ele teve contato direto com uma cena musical efervescente, marcada pela ousadia criativa, pela crítica social explícita e pela fusão de gêneros.
“Quando o Planet Hemp surgiu na minha vida, eu fiquei surpreso com a maneira plural que eles criavam música, e isso me contagiou. Foi um momento muito bom na minha vida para construir a minha independência artística para subir nos palcos. Como eu vinha da escola do jazz por conta do Paulo Moura, a banda me colocou dentro da minha idade, da contemporaneidade na minha juventude, o que me permitiu cantar com O Rappa até a Ivete Sangalo“, afirmou.
O rap, inclusive, sempre esteve por perto. Da Lapa com o rapper Marechal aos palcos paulistanos, Seu Jorge se viu abraçado pelo gênero e representado nas narrativas dos Racionais.
“Quando ouvi “Diário de um Detento” e “Negro Drama”, entendi mais sobre mim, sobre meu lugar no mundo. Essas músicas me ajudaram a me entender no espaço e no tempo.”
Ao interpretar “Negro Drama”, sua voz adiciona uma nova camada de força e potência a um dos maiores clássicos da música brasileira. “O texto do Edi Rock fala muito sobre mim e minha vivência. É um texto que fala sobre a dificuldade de se manter em pé, coerente, sem se revoltar. Então, essa canção combina muito com a minha vida e sempre quis reforçar como um texto poético. Essa música tem efeito efetivo na vida da juventude.”
Estética popular, linguagem universal
Seu Jorge construiu uma das estéticas mais singulares da música brasileira recente, uma obra que soa sofisticada sem perder o pé no chão, com melodias e versos que transitam entre o lirismo e o cotidiano.
Essa combinação, longe de ser um cálculo artístico, nasce de um princípio geográfico e afetivo. “Parece um desafio esse critério estético, mas não é. Por exemplo, eu precisava colocar o cavaquinho na minha música por uma questão de CEP. Eu queria que todos entendessem que aquele som tinha origem no Rio de Janeiro e o cavaquinho tem esse papel.”
A busca por um som que fosse, ao mesmo tempo, popular e elegante, encontrou no álbum América Brasil um ponto de virada. A parceria com Pretinho da Serrinha ajudou a estabelecer uma sonoridade que respeitava as raízes e, ao mesmo tempo, dialogava com um lugar mais universal. “Eu achava que era possível falar sobre crônicas da observação popular, como “Mina do Condomínio” e o “Motoboy”, que conversasse com a massa e com esse senso estético mais musicalizado”, acrescenta.
Essa tentativa de conciliar a linguagem popular com a sofisticação dos arranjos se tornou uma marca de sua discografia. E é a partir dessa escolha que ele começou a entender o próprio papel como artista.
“Hoje, aos 55 anos, percebo que tudo o que faço me leva para a comunicação com um público de escuta muito aberta. Eu trabalho na produção de entretenimento, mas me vejo como um produtor de cultura.”
Por isso, Seu Jorge não se furta a definir o que move sua arte: a beleza.
“A minha pesquisa é pela beleza, porque é a beleza da arte que toca os corações. Um dia vendo um documentário, vi um ator americano falando sobre sua performance ao vivo no auge da carreira, e ele se questionou: “o que mais esse público quer de mim?”. E ele teve a resposta: “eles querem que eu roube a preocupação deles”. Depois que ouvi isso, entendi que posso dar isso pra minha gente também.”
Cinema, memória e política
Na trajetória de Seu Jorge, cinema e música não são caminhos paralelos: são vias que se entrelaçam. Desde seus primeiros passos no teatro, ele compreendeu que a interpretação dá corpo à canção e que uma performance potente é sempre atravessada pela emoção. “Quando eu vejo um vídeo da Elis Regina, vejo que ela está imersa no personagem. Essa intersecção entre atuação e canto contribui para a imersão e me ajuda a me colocar nas dores dos textos que interpreto.”
Do personagem Mané Galinha, em “Cidade de Deus”, ao revolucionário Carlos Marighella, Seu Jorge foi moldando um legado também nas telas. E reconhece a importância dos filmes que protagonizou.
“Esses dois filmes são feitos a partir de histórias reais. Contar a nossa história é extremamente importante. “Cidade de Deus” foi fundamental na formação de atores e profissionais periféricos. Já “Marighella” tem peso histórico porque, sem memória, um país fica à mercê das versões da própria história.”
A partir desse cinema de memória, o artista também enxerga seu papel político a partir do posicionamento ético diante das desigualdades.
“Eu me vejo a favor da luta pela democracia e estou do lado do povo em todas as pautas. Sou progressista, a favor da reforma agrária, da redução da jornada 6 por 1, da redução de impostos para os trabalhadores.”
Com olhar crítico sobre o cenário atual, Seu Jorge defende uma política externa que promova integração regional e soberania nacional. “O Brasil é um país virtuoso, soberano e precisa pleitear seu espaço no mundo com mais protagonismo.” Ao mesmo tempo, critica os impactos do imperialismo norteamericano, mais protecionista e gerador de instabilidade global. “Posso não me identificar com uma corrente ideológica, porque o Brasil está numa crise política grande e, sem resolver essa crise, não tem como resolver outros problemas do país. Dito isso, eu me alinho muito mais ao pensamento progressista.”
Baile à la Baiana
Depois de dez anos sem lançar um álbum com faixas inéditas, Seu Jorge retornou com Baile à la Baiana, lançado no início deste ano. Gravado com a banda Conjuntão Pesadão, o disco celebra a música preta brasileira em sua pluralidade: chula, samba, soul, funk, black music. Tudo costurado com o frescor de uma amizade com raízes na Bahia — nas parcerias com Peu Meurray e Magary Lord, no Galpão Cheio de Assunto, espaço de arte e trocas em Salvador.
“O disco é sobre encontro. É a soma da alegria do Rio com a vibração da Bahia. Todo mundo que participou trouxe sua verdade para o estúdio. Todo mundo que estava na produção desse disco não escreveu uma nota, um acorde. Tudo foi feito de um jeito rápido e natural”, conta. O projeto percorre narrativamente um fim de semana inteiro, da sexta ao domingo, como um convite para se entregar à dança, ao afeto, à coletividade.
“Quando eu digo que quero olhar para uma discografia plural, essa é uma das coisas que me oxigenam o tempo inteiro: buscar novos caminhos para a expressão musical. No caso do novo disco, foram dois amigos que me ajudaram a chegar nesse resultado e, para chegar no resultado que queria, precisava do respaldo deles para falar em nome da música baiana”, diz.
Salvador em São Paulo: o show que convida à celebração
No dia 27 de setembro, o show Baile à la Baiana chega ao palco do Vibra São Paulo. E a proposta é clara: levar Salvador para dentro da capital paulista. “Quero que o público esqueça que está em São Paulo. Que entre nessa vibração, nessa festa, e sinta a boa energia do nosso encontro.”
O repertório vai unir os clássicos consagrados aos novos batuques, em um set de mais de duas horas e meia. “Todo o repertório consagrado vai tocar também e ele se adequa ao Baile. Esse novo show não é um novo gênero, é só uma noite de celebração com o BPM acima de 120. A gente quer ver o povo dançando, sorrindo, se reconhecendo.”
Perguntado se esse novo espetáculo traz algum sentimento diferente das apresentações do passado, Seu Jorge não nega:
“Como estou com novos parceiros no palco, muita coisa que não era natural no palco tem se tornado. Com esse estilo baiano, esse show pede uma performance que é natural deles e minha música tem uma outra abordagem. E esse aprendizado, esse intercâmbio tem sido muito bom.”
Aos 55 anos, Seu Jorge olha para frente com o mesmo brilho inquieto do início de carreira. Comanda a Black Service, produtora que forma profissionais negros do entretenimento e investe na autossuficiência cultural. “Quero que mais gente entre nesse campo. A inteligência dessas pessoas melhora a minha. Estou aberto ao novo o tempo inteiro.”
Se é possível definir um legado em movimento, talvez ele mesmo o tenha resumido melhor: “A minha pesquisa é pela beleza, porque é a beleza da arte que toca os corações”. E assim, entre os sons do passado e os batuques do futuro, Seu Jorge segue fazendo do palco um lugar de boa energia, liberdade e pertencimento.
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Felipe Mascari