Duas semanas após denúncia, Alaíde Costa se emociona com homenagem em sarau: “me sinto a rainha da noite”

Prestes a completar 90 anos em dezembro, Alaíde Costa foi celebrada neste domingo (20) no Sarau Brasilis, em São Paulo. A cantora e compositora foi o centro do evento, que exalta grandes autores da MPB ao reunir intérpretes da nova geração para revisitar suas obras. O evento acontece duas semanas após Alaíde e Eliana Pittman denunciarem um convite disfarçado de homenagem, marcado por cachê irrisório e desrespeito às trajetórias de artistas negras.
Em um pequeno teatro, dentro de um casarão que respira música em um bairro nobre da zona oeste da capital paulista, lotado de convidados, músicos e admiradores, Alaíde Costa assistiu às sete canções que marcaram sua carreira ganharem novas versões emocionantes e respeitosas. Quem deu novas cores ao repertório foram os artistas convidados. Entre uma apresentação e outra, a carioca nascida no Méier e criada na Água Santa, zona norte do Rio, relembrou episódios da vida artística e disse, emocionada:
“Difícil traduzir o que eu tô sentindo nesse momento. Depois de tantos anos, tantas batalhas, receber esse carinho é gratificante demais.”
Durante a interação com o público, a jornalista Liz Sacramento, do TMDQA!, perguntou a Alaíde como se sentia ao ser homenageada daquela forma. A cantora havia se mostrado surpresa ao perceber que quase todas as músicas apresentadas faziam parte do seu repertório de composições.
Sem hesitar, Alaíde afirmou com toda graciosidade: “Eu me sinto, assim, a rainha da noite.” A plateia aplaudiu, e a próxima pergunta veio naturalmente: Por que a senhora acha que esse reconhecimento não veio antes? De voz serena e sorriso leve, ela respondeu baixinho, com uma doçura irônica que não passou despercebida: “Ah, não sei. Ah, eu não sei.” A resposta foi recebida com novos aplausos mas, do público, veio também um sussurro coletivo, como se todos ali soubessem muito bem a palavra que ela preferiu não dizer.
O setlist da noite percorreu diferentes fases da carreira da cantora: Adriano Brandini abriu com “Canção do Breve Amor” (parceria de Alaíde com Geraldo Vandré); Larissa Eugênia cantou “Afinal”; Clara Castro e Ciro Belluci dividiram “Você é Amor” (de Alaíde e Tom Jobim); Amandha, tomada por lágrimas nos olhos, interpretou “Meu Sonho” (com Johnny Alf); Emma Araújo, que não conteve o choro antes de iniciar a música ao dizer que compositora lembrava sua avó, trouxe “Tristonho”, de Alaíde e Nando Reis; e Adriel Vinícius apresentou “Foi Só Porque Você Não Quis”.
Antes da música, Alaíde compartilhou que, ao gravar o disco Coração (1976), Caetano Veloso prometeu lhe dar uma composição. Foram várias visitas à casa dele, muitas com Milton Nascimento, mas nada acontecia. Tempos depois, num show de Johnny Alf no Rio, Caetano comentou: “Eu não entrei no Coração.” Alaíde respondeu: “Só porque você não quis.” A frase virou música, anos mais tarde, em parceria com Caetano e Emicida.
O encerramento ficou por conta de Selma Fernands, ex-participante do The Voice Brasil, que emocionou o público com sua interpretação de “Me Deixa em Paz” (Monsueto / Airton Amorim).
Participação Surpresa
A apresentação ganhou um brilho inesperado quando Alaíde Costa, sem que nada tivesse sido combinado, pegou o microfone e decidiu cantar ao lado de Selma. Foi um daqueles momentos raros em que o improviso e a conexão artística tomam conta do palco e transformam tudo ao redor.
Alaíde, à vontade e entregue, selou a homenagem com sua voz forte e única, para surpresa de todos. O pequeno teatro, que já estava em aquecido, foi tomado por um arrepio coletivo. Ao TMDQA!, Selma Fernands disse:
Eu sou muito fã da Alaíde desde pequena mesmo. É a primeira vez que eu vejo ela na vida. Pra mim, é um encontro de geração. Eu me espelho tanto nessa mulher, que passou por tantas coisas e ainda continua com leveza. Quando eu tenho esse encontro com ela, meu Deus, eu acho que eu tô no caminho.
Reconhecimento após denúncia de apropriação e desrespeito
A edição que homenageou Alaíde Costa foi a mais concorrida desde a criação do sarau, no fim de 2023, atraindo um público ansioso por testemunhar de perto o reconhecimento à artista que há décadas integra o patrimônio da música brasileira.
A homenagem vem em boa hora. Há duas semanas, Alaíde e Eliana Pittman denunciaram nas redes sociais um caso de falsa homenagem. As duas relataram ter recebido propostas para participar de um musical por um cachê irrisório de mil reais cada. A denúncia provocou um debate importante sobre o uso do discurso da representatividade para explorar financeiramente artistas negros. “É sempre bom quando dizem que querem homenagear as vozes negras. Reverenciar o canto ancestral, as histórias de luta, resistência e beleza que carregamos em nossa trajetória. Mas o que estamos vivendo agora não é homenagem — é apropriação”, escreveu Alaíde.
Não seria a primeira vez que Alaíde Costa enfrenta injustiças em sua trajetória. Em 1962, o histórico show no Carnegie Hall, em Nova York, que projetou a Bossa Nova para o mundo, reuniu nomes como Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Luiz Bonfá, Sérgio Mendes, Roberto Menescal e Oscar Castro Neves. Alaíde, que participou dos primeiros encontros do movimento e ajudou a moldar sua sonoridade, sequer foi comunicada sobre o espetáculo.
No Sarau Brasilis, ela foi questionada sobre essa ausência e respondeu com a delicadeza habitual, mas não sem certa ironia: “Ah, eu não sei se foi erro ou não. Eu fiquei surpresa quando vi lá o grupo todo, e eu simplesmente nem sabia, não fui comunicada de nada, só fiquei surpresa, mas… E aí? Fazer o quê, né?”. Mais de seis décadas depois, em 2023, Alaíde finalmente pisou no palco do Carnegie Hall, na reedição do show, um acerto tardio para uma ausência que nunca deveria ter acontecido.
Foi uma maravilha, né? Gente… Ah, vou contar. Eu nunca fui aplaudida tanto na minha vida como fui ali naquela noite. Foi uma noite maravilhosa pra mim.
Homenagem e conexão com artistas
O Sarau foi apadrinhado pelo veterano Guga Stroeter — músico, produtor e pesquisador musical, que acumula mais de 30 discos gravados ao longo da carreira, além de indicações ao Grammy. A missão do projeto é justamente promover encontros entre diferentes gerações de compositores brasileiros. As edições acontecem uma vez por mês, em formato fechado para convidados, principalmente músicos, produtores e pesquisadores. Antes de Alaíde, nomes como João Donato, Danilo Caymmi, Márcio Borges, Sérgio Britto, Roberto Menescal e Anastácia já passaram pelo palco.
O Sarau Brasilis tem um formato dividido em três momentos. A noite começa com uma roda musical aberta, em que músicos e cantores presentes se apresentam de forma espontânea. Em seguida, o Palco Autoral sorteia cinco artistas inscritos para mostrar composições próprias. O vencedor escolhido pelo júri recebe um violão e a chance de apresentar sua música ao artista celebrado na noite. Nesta edição, o trio Tukum Bando foi o premiado com “Andei”. Por fim, a programação se encerra com a homenagem principal, em que o convidado tem sua trajetória revisitada por novos intérpretes e pela banda residente do projeto. É essa conexão entre tradição e futuro que move o Sarau Brasilis. Renato Soares, produtor musical, compositor e coorganizador do evento, resume a missão:
O Sarau Brasilis tem como essência promover a união entre a classe artística e toda a cadeia produtiva da música. A gente busca, a cada edição, manter viva a imensidão da cultura brasileira, assim como as obras dos grandes mestres, que a gente recebe e prepara uma bela homenagem. Temos também nosso Palco Autoral, que dá voz a novos artistas, promovendo assim uma conexão entre a velha e a nova guarda da música.
Longevidade
Aos 89 anos, Alaíde Costa segue em plena atividade. Em maio deste ano, lançou Uma Estrela para Dalva, álbum em que interpreta o repertório de Dalva de Oliveira, um dos ícones da era do rádio. Antes disso, apresentou em 2024 o disco E o tempo agora quer voar, reafirmando sua relevância. Em 2023, esteve em Portugal com a Orquestra de Jazz do Algarve e subiu ao palco do Carnegie Hall. Em 2022, Alaíde lançou o premiado álbum O que meus calos dizem sobre mim, produzido por Emicida, Pupillo e Marcus Preto. O disco foi eleito o melhor lançamento de MPB no 30º Prêmio da Música Brasileira. Ao longo de sua carreira, são mais de 20 discos gravados e parcerias com gigantes como Johnny Alf, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Milton Nascimento e Oscar Castro Neves.
E agora, também ao Sarau Brasilis, que com esta homenagem ajuda a cravar: o lugar de Alaíde Costa é no panteão da música brasileira. “Vocês têm que acreditar no que querem fazer. Se você tem em mente uma diretriz do que quer, não tem que abrir mão. Tem que batalhar até o fim”, aconselhou Alaíde aos jovens artistas presentes. Quem esteve ali saiu com a certeza de que testemunhou um capítulo histórico. Como definiu Luiz Tristão, cantor, compositor, apresentador e coorganizador do evento:
A Alaíde Costa é uma entidade da música brasileira e a gente fica muito feliz que ela tenha topado o convite para ser homenageada no Sarau Brasilis. Eu tive a oportunidade de entrevistá-la e foi emocionante ouvir as histórias de uma das principais artistas do Brasil e sentir de perto toda a sua força e potência! Ela ficou muito feliz em estar ali e ver suas composições sendo interpretadas por jovens talentos, então, pra nós, o resultado foi 100% positivo.
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Liz Sacramento