Serpente Sapiente: a grata descoberta de quem faz do rap um corpo político
Com um pé na urgência e o outro na reflexão, Serpente Sapiente atravessa o rap como quem traduz sua própria sobrevivência. Conhecido nas trincheiras do rap underground sulista, o artista gaúcho acaba de lançar dois discos simultâneos que, apesar de contrastantes na forma, são complementares na essência.
Apenas o Básico e Manifesto Sepé chegaram às plataformas no dia 2 de maio pelo selo paulista Sujoground — mesmo responsável por Maria Esmeralda, um dos projetos mais aclamados do rap nacional em 2024.
Mais do que um lançamento ambicioso, a dualidade dos discos é uma espécie de manifesto artístico que encarna o paradoxo da existência periférica: entre a contemplação e a insurgência, entre a sensibilidade e a brutalidade. “Eu cresci entre o silêncio da fome e o barulho da polícia. Esses dois discos são sobre isso: o grito contido e o grito escancarado. É sobre viver nesse entre. Não é só música, é relato. É corpo político”, resume Serpente.
Grito escancarado
O disco Manifesto Sepé é um soco lírico-político. São 10 faixas que misturam rap com punk e new metal, produzidas, mixadas e masterizadas por Henrique Fioravanti. A base do projeto é o enfrentamento direto às estruturas que silenciam e matam: o capitalismo, o racismo, a gentrificação.
A escolha do nome não é à toa — Sepé Tiaraju, líder indígena Guarani que desafiou o colonialismo e deixou como legado a frase “Esta terra tem dono!”, é homenageado tanto no álbum quanto na ocupação homônima em Porto Alegre, onde Serpente viveu por dois anos.
Mais do que moradia, a Ocupação Sepé Tiaraju representou um refúgio político, afetivo e cultural. Organizada pelo MLB (Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas), ela acolheu o artista e sua mãe, em situação de rua. “Foi ali que eu compreendi na prática que o socialismo funciona. Fiz anotações, li Marx e Lenin, e muitas dessas ideias viraram letras. Esse disco é minha forma de agradecer e registrar tudo isso”, conta.
Estampar o símbolo comunista na capa de um disco de rap em 2025, ano em que parte da cena parece cada vez mais alinhada com valores neoliberais, também é uma escolha de enfrentamento. “O rap virou operário do capital e caiu na armadilha de achar que só vence quem consome o lixo que vendem pra gente. Eu escolhi me revoltar”, dispara.
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Grito contido
Se Manifesto Sepé é externo, cru e barulhento, Apenas o Básico aposta no caminho oposto: rimas sutis, beats sem bateria, lirismo e vulnerabilidade. Gravado em apenas três dias dentro da própria Ocupação Sepé, o disco aposta em uma estética drumless guiada por samples picotados e versos íntimos. “Gravamos no tempo da urgência, sem frescura. Só o necessário. A beleza do básico é que ele mostra o essencial”, explica o rapper.
Produzido por De Soulza, o projeto conta com participações de Matheus Coringa, Lis MC e Dragão Crioulo, e se constrói como um respiro lírico no meio do caos. Mas não se engane: a suavidade do disco não é sinônimo de alienação. “Ele é mais espírito do que mente, mas ainda é político. Sem comida e sem moradia, o emocional enfraquece e nada acontece. Precisamos cuidar da gente também”, reflete.
Coragem, prolificidade e contradições
Entre 2023 e 2025, Serpente lançou quatro discos — um fluxo criativo intenso, quase ritualístico. “Escrever e produzir é meio terapia, meio videogame. Chega um ponto que vira extensão do corpo. Me sinto pleno, mas já ansioso pelo próximo caminho”, revela. Sua arte é atravessada por punk, jazz, rap, hardcore — influências que não são só sonoras, mas também metodológicas.
Seu processo de criação parte da escuta atenta da realidade e da recusa em seguir tendências rasas. “Eu faço o som que quero ouvir e não encontro. O hip hop sempre dialogou com o punk, com a revolta, com a rebelião. Só que hoje, boa parte da cena acredita que liberdade é consumir. E o rap não pode ser isso”, critica.
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Um disco contra a despolitização
Se o rap contemporâneo se aproxima cada vez mais do mercado e das marcas, Manifesto Sepé é uma provocação direta. Um disco que reafirma o lado político do hip hop e faz lembrar que nem todo artista está disposto a diluir suas convicções em troca de engajamento.
“Boa parte do cenário atual do Rap caiu na armadilha de achar que a única maneira da favela vencer é dando dinheiro pra bilionário dono de marca gringa. Uma grande fatia do cenário se rendeu e ninguém pode culpar nenhum de nós por isso, o jogo é sujo e as regras tão na mesa, mas quem dita as regras? Por isso, ao mesmo tempo que reconheço a estrutura que escolhi não me render a ela e fazer parte da fatia que questiona e se revolta, também provocar usando a linguagem moral e religiosa contra a própria fonte”.
“Manifesto Sepé contradiz essa armadilha. Enquanto uma parte da cena acredita que o caminho é o favelado contra o favelado, eu escolho mostrar que o inimigo é outro. Esse disco é sobre quem sempre esteve à margem, sobre quem nunca teve onde morar, sobre quem cansou de ser explorado e agora quer gritar”, finaliza.
Com coragem, entrega e consistência, Serpente Sapiente usa o rap não como vitrine, mas como ferramenta de transformação — um grito duplo que reverbera nas entranhas de quem escuta.
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Felipe Mascari
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