TMDQA! Entrevista: Cícero e os fragmentos de “Uma Onda em Pedaços”

Cinco anos se passaram desde que Cícero lançou seu último trabalho autoral – um hiato silencioso que, para os fãs, soou como uma longa travessia. Agora, em 2025, o cantor e compositor carioca retorna com Uma Onda em Pedaços, um disco que reúne dez faixas inéditas e participações de nomes como Duda Beat, Tori e Vovô Bebê, marcando não só um novo capítulo em sua carreira, mas também um reencontro profundo com sua própria essência artística.
Lançado no dia 6 de agosto, o álbum carrega as marcas de um período fragmentado – reflexo das transformações pessoais e coletivas vividas desde a pandemia de 2020. Cícero costura o caos com lirismo, transitando entre o português, o inglês e até o silêncio das palavras, em canções que falam de recomeços, perdas e reconstruções. Com uma estética fluida que vai do forró ao rap, do experimental ao jazz, o disco soa como uma espécie de manifesto afetivo, ecoando a diversidade emocional e sonora de sua trajetória.
E, para dar vida ao novo repertório, Cícero parte em turnê pelo Brasil e Portugal a partir de outubro, celebrando não apenas o lançamento do disco, mas também a conexão com o público que o acompanha desde os tempos de Canções de Apartamento.
Em uma conversa íntima e reflexiva com o TMDQA!, o artista compartilha os bastidores desse novo trabalho, fala sobre os desafios da criação em tempos de incerteza e revela como tem sido esse reencontro com sua própria voz.
Vem com a gente mergulhar nessa onda de sentimentos, sons e fragmentos que se unem em pedaços – mas que juntos formam um dos discos mais comoventes do ano.
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TMDQA! Entrevista Cícero
TMDQA!: Cícero, primeiramente, muitíssimo obrigado pela oportunidade. Muito bom te receber. Esse é seu primeiro álbum de inéditos em 5 anos. O que acabou motivando esse tempo todo em silêncio?
Cícero: Foram as circunstâncias. A pandemia aconteceu exatamente quando eu lancei meu último disco antes desse, o Cosmo. O lançamento estava previsto para março de 2020, que foi justamente quando começou o lockdown. E aí tudo foi sendo empurrado.
Os dois primeiros anos foram consumidos pela pandemia. Em 2022, eu fiz a turnê do Cosmo. Em 2023, acabei fazendo a turnê de uma ideia que surgiu na pandemia, de tocar com músicos orquestrados projetados.
E foi só no ano passado que comecei a elaborar a ideia do novo disco. Tentei entender o que tinha acontecido – esse lapso de 5 anos entre álbuns, que nunca tinha acontecido antes. Desde meu primeiro disco, em 2004, eu lançava algo novo a cada dois anos, com banda ou solo.
Sempre registrei minha vida nesse formato, com essa pulsação. Mas da pandemia pra cá, foi o maior período da vida em que fiquei sem gravar. E, ao mesmo tempo, foi um dos períodos em que mais coisas aconteceram.
Perdi pessoas importantes, os planos mudaram… Quando fui fazer o álbum – que é sempre uma forma de registrar o tempo – percebi que esse tinha sido um período de vida totalmente fragmentado. As coisas ficaram em pedaços, e agora estou tentando reorganizá-las. Vi beleza nisso. Achei que isso merecia ser um disco.
Cheguei a lançar duas músicas avulsas nesse tempo, mas não via elas como parte de nada. Comecei a entender que todo processo da vida e da arte é meio assim.
TMDQA!: Certo… E você acabou comentando sobre como a pandemia te deixou “fragmentado”. Queria entender como esse sentimento moldou o álbum pra você.
Cícero: Foi um sentimento que começou na pandemia e foi sendo reafirmado pela vida. É uma lente de ver o que acontece. Acho que o álbum é uma síntese disso que comecei a entender lá atrás. A vida continuou me dando motivos para que esse álbum precisasse existir.
Agora, senti essa pulsão de registrar isso. O disco parece um quebra-cabeça com as peças em cima da mesa, algumas de cabeça pra baixo… é isso.
TMDQA!: Pensando na estética do trabalho, a gente vê que você passeia por forró, rap, jazz, clássico, experimental… É uma diversidade incrível. Como você equilibra essa variedade sem perder a unidade do disco?
Cícero: Pô, essa pergunta é boa! Eu tinha ideias, mas queria somá-las à visão de pessoas que admiro artisticamente e humanamente. Chamei o Vovô Bebê pra participar de todo o processo, e naturalmente ele acabou gravando os baixos. E o baixo é a cintura da música.
Ele deu um movimento ao disco que eu não daria com minhas mãos, mas que eu conseguia imaginar junto com ele.
Acho que a unidade veio do fato de eu estar envolvido criativamente em todas as faixas – produzindo, operando as máquinas, microfones… E também deixando as ideias irem para o colo de outras pessoas, pra ganharem o olhar delas.
Isso rolou com os pianos também. Foram gravados por um cara que conheci no dia da gravação, indicado pelo Vovô: “Você vai gostar do piano e da pessoa”. Mostrei a música na hora e o que ele tocou de primeira é o que está no disco.
Teve coisa que fizemos em minutos, outras que levaram semanas. O foco era fazer com que o som desse suporte ao que está sendo dito nas letras.
A diversidade veio da diversidade de cabeças. Três bateristas diferentes, por exemplo — cada um com sua sensação rítmica. As pessoas colocaram suas personalidades, e isso moldou o disco.
TMDQA!: O disco tem músicas em português, inglês e até em “idioma nenhum”, como você descreveu. Como você lida com a linguagem como instrumento expressivo?
Cícero: Cara, é exatamente isso: linguagem como elemento expressivo. Você entende tudo sem precisar entender a palavra.
Quando éramos crianças, ouvíamos músicas em inglês que não entendíamos, e ainda assim sentíamos algo. Isso tem uma beleza única.
Essa música em “idioma nenhum” quer justamente proporcionar essa sensação. A ideia é não deixar que o sistema lógico interfira tanto. Quando você ouve uma canção pelos fonemas, sem racionalizar demais, ela te abraça mais.
O Vovô Bebê me causa muito isso. As letras dele são geniais, mas ele usa a palavra para criar uma natureza, e não apenas para impressionar com inteligência verbal.
TMDQA!: Você considera Uma Onda em Pedaços uma síntese da sua trajetória musical até agora?
Cícero: Acho que não. A síntese, pra mim, foi o Concerto 1, o outro álbum que lancei este ano. É como se ele fosse o lado A, uma organização bonitinha da minha obra, e Uma Onda em Pedaços fosse o lado B: o processo exposto, os cacos jogados na mesa, sem narrativa central.
Não sei se vou lançar outro disco em 6 meses ou em 6 anos. Não há plano. O álbum carrega essa ausência de planos.
TMDQA!: Inclusive, o disco tem muitas camadas, arranjos complexos, e a turnê começa em outubro. Como você pretende traduzir isso tudo para o palco?
Cícero: Tô começando a pensar nisso agora. Gostei muito da experiência do Concerto 1, com músicos projetados, mas gosto muito também de banda – guitarra, baixo, bateria. Foi o que ouvi na adolescência: Nirvana, Pixies…
Tô amadurecendo a ideia de unir os dois mundos: os seres humanos no palco e a linguagem sonora das projeções, com iluminação e sons de outras naturezas.
TMDQA!: Muitas músicas do disco falam sobre tempo, memória, ausência. Parece um diário emocional. Em “Pássaro Nave”, você canta sobre o que foi, o que é e o que está se tornando. Como você descreveria o Cícero de 2025?
Cícero: Em pedaços. Acho que é isso. Essa é a visão mais clara que tenho de mim mesmo agora.
TMDQA!: Em “Sem Dormir”, você comenta que ela foi composta especialmente para a Duda Beat, com quem tem uma amizade longa. Como foi essa colaboração com ela e a ideia de colaborar com outros nomes (Vovô Bebê e Tori)?
Cícero: São pessoas por quem tenho muito carinho e admiração artística. A Tori conheço há menos tempo, mas a presença dela é muito forte. Ela é uma pessoa linda e canta lindamente. Sentia a atmosfera de “Dia Vai” na voz dela.
A Duda e o Vovô são meus amigos há mais de uma década. A música com cada um deles foi uma forma de me aproximar artisticamente de pessoas com quem já tenho uma conexão profunda.
TMDQA!: Você também cita Fernando Pessoa em uma das faixas. Como a literatura influencia sua composição?
Cícero: Pessoa influenciou muito meu pensamento e composição – Drummond também.
No caso do disco, foi o “Guardador de Rebanhos” que me inspirou enquanto eu começava a conviver com a ideia de “Pássaro Nave”.
Normalmente, quando percebo uma referência, eu a nomeio. E também tem aquelas que estão no inconsciente, coisas que ouvimos quando criança.
A música é uma transmissão oral de sensações através de sons. Tem muito disso no disco – Pessoa, Leminski – mas diluídos na minha personalidade.
TMDQA!: Quase fechando: ao longo do disco você canta sobre a passagem do tempo. O que você aprendeu com ela?
Cícero: Que o tempo passa o tempo todo. Todas essas ideias que criamos – passado, presente, futuro – são formas de tentar equilibrar nossa relação com ele.
Mas o tempo é alheio a isso. Ele é constante, é movimento.
Você pode mudar sua percepção do tempo apenas pensando diferente sobre algo.
Por exemplo, decidir se alguém é parte do seu passado ou ainda do presente é uma escolha interna.
Hoje tento viver o presente – e isso significa pensar menos no passado e no futuro.
TMDQA!: Cara, é um grande privilégio ouvir você se expandir assim. Agora, um clássico do TMDQA!: queríamos saber, você também tem mais discos que amigos? E se pudesse escolher um disco que te define – como pessoa, não só como artista – qual seria?
Cícero: Tenho mais discos que amigo, sim. [risos] Tenho muitos amigos, mas muitos discos também.
Um disco só é difícil. Mas tem um que eu volto sempre: Matita Perê, do Tom Jobim.
Sinto coisas ali que não sinto em nenhum outro lugar. A cada década, eu volto pra ele.
Na adolescência teve o Nevermind, do Nirvana, que foi muito revelador. Mas o que mais me acompanha ao longo da vida é o Matita Perê.
TMDQA!: Maravilha! Cícero, muito obrigado pela conversa, parabéns pelo disco e sucesso com a turnê!
Cícero: Valeu, cara! Um abração.
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Eduardo Ferreira
TMDQA! Entrevista: Cícero e os fragmentos de “Uma Onda em Pedaços”
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